segunda-feira, 20 de abril de 2015

talvez possa lembrar, talvez possa esquecer

demência, seja ela qual for, é um tipo de doença muito dolorida, porque a gente não perde a pessoa doente no dia que ela morre. a gente começa a perder a pessoa desde que a doença começa e vai levando a pessoa embora pouco a pouco. a cada dia que passa dói porque ela é um pouco menos do que no dia anterior. perdemos um pouco a cada dia, a cada semana, a cada ano. a dor se estende, é vivida quase que como em parcelas, mas a cada dia é uma dor grande porque perder um pouco da pessoa é como perder tudo e viver isso todo dia é como a pessoa morrer todo dia. mas o que mais dói mesmo é que a doença vai contagiando também a sua mente. e todas aquelas lembranças de quem a pessoa realmente é (sem doença) vão ficando fraquinhas para dar espaço a quem aquela pessoa está (doente). e aí vem o medo de olhar muito, ficar muito perto, para as memórias boas não serem contaminadas. só que é inevitável. a doença cresce nela e em você. e então chega o dia em que na pessoa só resta doença e até aquilo que só resta, você perde também. é a última perda. e você acha que essa perda vai ser mais fácil, afinal, você já perdeu tanto, por tanto tempo, todos os dias, semanas e anos. você já perdeu tanto que a perda final não deve ser tão ruim. mas é. ela dói bastante também como se você perdesse tudo de novo. mas aí você entende que diferente das outras vezes que você perdia partes de uma pessoa saudável, dessa vez tudo que se foi, o que restava, era apenas a doença. e a doença se vai, não apenas da pessoa que você ama, mas ela se vai de você também. porque se antes suas lembranças estavam dominadas pela doença, quando ela se vai, as lembranças que voltam a ter força são as de quem a pessoa realmente é. e aí você entende tudo! eu não enterrei a maria rosa hoje. eu enterrei a doença. eu não perdi a maria rosa ontem. eu perdi a doença. a doença faz parte da cura e a maria rosa agora se curou. a maria rosa não morreu, a doença que morreu. a maria rosa viveu de novo em mim, nas lembranças das músicas que cantava, poesias que recitava, amor que distribuia de todas as formas. e não só em mim, a maria rosa agora, e só agora, vive de verdade.

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